Comer, dormir e escrever — a prestação.
Abri minha caixa de e-mails, que alegremente recebe mais e mais newsletters de escritores independentes, e me deparei com a última edição da Toranja, um projeto que visa estimular nossa criatividade. O exercício da semana consistia no seguinte: dormir com um caderno e caneta ao lado da cama e, ao acordar, escrever o que se lembrava dos sonhos daquela noite.
Não demorou três segundos para eu apagar o e-mail, consciente de que não poderia cumprir aquele desafio. Afinal, nestes dezoito meses como mãe, não sei mais o que é dormir. Quem dirá sonhar. Quem dera então lembrar. Quiçá escrever ao levantar da cama.
Desperto algumas vezes, enquanto a cidade inteira dorme, com um bebê a procura do meu seio. Acordo cedinho com ela pedindo por mais tetê, para então me dar um abraço, um beijo carinhoso e logo apontar para a porta. É hora de começar o dia. Troco suas fraldas, vou para cozinha preparar o café da manhã que ela come com calma e eu engulo a prestação — feito meu sono. Sigo com o bebê grudado na perna. No colo. Correndo pela casa na direção do perigo.
Se mal tenho tempo para degustar uma xícara de café, quem dirá escrever. Se mal tenho tempo para dormir, quem dirá sonhar.
Escrevo nas brechas, nos enquantos, nos suspiros que o tempo dá. Por muito escrevi com minha filha deitada sobre meu peito. Nunca no papel. Sempre na tela minúscula do celular no modo noturno. Geralmente com uma mão só. E, assim como meu café e meu sono, sempre a prestação.
As vezes penso nos espaços que deixamos de ocupar por causa da maternidade. Nas regras que insistem em colocar para tudo, inclusive a escrita. Que para se manter escrevendo é preciso ter uma rotina diária. Que para pertencer a esse lugar sagrado de escritor é preciso disciplina, uma mesa bem organizada, um bloco de notas, uma xícara de café quente e, é claro, tempo. Muito tempo. Coisa que, não é segredo, uma mãe não tem.
Não sigo o protocolo e nem por isso deixo de escrever.
Coincidentemente no dia em que abri o e-mail da Toranja, eu estava com uma caneta e um caderninho. Tenho esse costume bobo de levar comigo dentro da mochila, não importa onde vá. Depois de um longo dia na rua com minha filha, uma brecha. Resolvi me dar ao luxo de sentar em um café e, é claro, pedir um espresso para ajudar a me manter acordada.
Ela dormia no carrinho. Eu contemplava a vista do rio no centro da cidade. O relógio marcava dez para as três. Abri a página em branco e escrevi sobre meus sonhos. Não aqueles que se perderam nas madrugadas calmas de olhos fechados. Os outros. Os reais. Os que vivo entre uma gargalhada de criança e uma nova descoberta. Os que aparecem de repente nas frestas da rotina. Os que acontecem enquanto estou acordada.
Afinal, não é porque não mais durmo, que deixo de sonhar.
Escrito originalmente em agosto de 2022 na Newsletter Do Tamanho do que Vejo